E a morte de John Ashbery
é anunciada quando todos os meus livros
dormem em caixas
numa dessas nossas mudanças periódicas
em busca de novas paredes
para bater com a velha cabeça.
Além-mar, preparavam o próprio
corpo de Ashbery para o encaixotamento.
Mãos batiam em tapas leves contra ombros,
requentavam o consolo
mequetrefe
de que morre o corpo, fica a obra.
O poetariado, ora, nos comportamos
como em qualquer profissão,
um jogo de cadeiras.
Mas a tristeza é sentida, cada um pensa
na própria mortalidade.
O sol brilhava sem empecilhos
sobre o céu de Berlim, anjos
apenas na cabeça dos obsoletos.
Eu estava vivo! Por enquanto.
E tirava livros de vivos e mortos
das caixas de mudança.
Ok. Ok. Não
hei-de sonhar com uma Nova Iorque
da década de 1950, imaginar-me
em calçadas e botecos
com John Ashbery e Jane Freilicher
ou visitar com Frank O’Hara
o estúdio de Mike Goldberg.
Se toda geração desperdiça
os seus pintores, seus poetas,
não hei-de ajudá-la.
Os garotos bonitos que geraram
elegias oblíquas em Ashbery
e odes explícitas em O’Hara
estão também mortos.
Mortos,
Jane Freilicher e Mike Goldberg.
Mas diante de mim, os ombros
sãos de Anatol e Malik são
um exemplo de Bauhaus,
cuja beleza vem da solidez,
sua funcionalidade. Pão
para toda sobra.
Mesmo eu ainda por cá ando,
o que não deixa de ser surpresa,
e sento-me nos estúdios dos vivos,
Malte Zenses e David Schiesser,
pintores que compartilham
comigo o oxigênio, as crises
financeiras e de asma,
e vejo o tecido de suas telas
sugar a tinta e secar-se
na umidade do ar, agora.
Não encontro analogias fáceis
neste momento para justificar
este poema, comparações entre o trabalho
de Malte Zenses e David Schiesser
com tinta e o meu trabalho
também com tinta, como fez
Frank O’Hara no estúdio de Mike Goldberg.
Sei só que estamos vivos e confusos
e ainda não fomos encaixotados,
enquanto pelos jornais da América Latina
jornalistas atualizam periodicamente
o obituário de Nicanor Parra.
/
Ricardo Domeneck, Carta a Ismar Tirelli Neto no dia da morte de John Ashbery
A foto que ilustra o poema foi uma sugestão do Ismar, que explica:
Ismar: [a gente costuma brincar que eu sou a judy garland e ele, a bette davis. mas não há imagens da bette com a judy. então temos a crawford e a judy!]
– Ricardo Domeneck, in Doze cartas, edição especial limitada em doze envelopes e papel especial, por ocasião da edição de Odes a Maximin (Rio de Janeiro: Garupa Edições, 2018).