“Se não é imagem, é o quê? Amor”: Raquel Moliterno lembra Fátima Roque

Perder um mestre é foda.
A gente se sente órfão na alma.

Fátima Roque foi minha mestra.
E que mestra…
Com ela aprendi a olhar o meu trabalho.
E a pergunta mais importante em um processo criativo: por que não?

Uma das minhas primeiras lembranças da Fátima, é a do trabalho de conclusão dela no SENAC. Eu não tive a sabedoria de assistir ela apresentar o trabalho, mas tive o privilégio de ouvir as histórias e manusear “a caixinha da Fátima”. Que era como a gente chamava quando ia na biblioteca pedir pra ver. Passei horas na biblioteca, abduzida lendo as cartas, absorvendo as imagens. E tentando entender como uma caixa com objetos, cartas, e sim, fotografias podia ser um trabalho de conclusão de um bacharelado em fotografia. Quem quiser ter uma ideia melhor desse mimo, dá uma olhada aqui em o espírito do tempo.

Fátima largou a advocacia pra fugir com a fotografia.
E deixou isso bem claro ao cianotipar o código penal inteiro. Todos os volumes.
Assim era essa grande mestra. Sem limites. Sem perder tempo. Sem medo.
Obsessiva. Questionadora. Contestadora. Extremamente viva e ativa.
Pra quem quiser saber um pouquinho mais da trajetória fantástica dela, Simone Wicca conta lindamente aqui um pouco disso e da relação das duas. E da doença que a levou.

Por coisas da vida, dessa vida que é generosa e nos prega peças pra lembrar daquilo que realmente importa, largou tudo e foi seguir sua paixão: a imagem.

Como boa pescadora, ela contava as melhores mentiras. As mais lindas e delicadas. As mais intrigantes. As mais questionadoras. As mais sutis. Aquelas que se alojam sorrateiramente no fundo do pensamento. E que esperam até você estar pronto pra germinarem.

O que é uma imagem? O que é uma imagem fotográfica? Quando uma imagem passa a ser fotográfica e quando ela deixa de ser? Qual o limite da fotografia? Como ultrapasso esse limite?

Fotografia e verdade. Fotografia é verdade?

Fátima me fez o imenso favor de plantar essa questão no meu processo criativo. E desde então venho desconstruindo e reconstruindo esses conceitos, inspirada por um trabalho dela que brinca com muita delicadeza com essas ideias. Van Velthen deu um nó na minha cabeça. Aonde a verdade começava, onde ela terminava. E se terminava. Eu ainda não sei. E acho esse trabalho absolutamente genial exatamente por isso.

Uma das minhas memórias mais queridas dela é de quando eu – frustradíssima com uma albumina que não tinha atendido às minhas expectativas previsíveis, acomodadas, controladas – fechava a esteira de secagem reclamando em voz alta: “merda… não saiu… não deu certo”… Ela, muito sagaz, abriu a esteira e me perguntou: não saiu? Não deu certo? Isso aqui que eu tô vendo… não é uma imagem…? É o quê então?
Isso chama generosidade, Mestra…

A mesma generosidade que fez ela juntar três imagens que eu tinha produzido combinando albumina, cianótipo e papel salgado em um tríptico. Na mesona da sala 26, puxou as três do monte de prints que eu tinha. Sem falar nada, só deu uma piscadinha pra mim e saiu andando. E assim, ela me apresentou pro meu trabalho. Que estava na minha frente e eu não via. Quando fui convidada a expor em Toronto, coloquei esse tríptico na parede. E tenho certeza que foi ele que me fez ser escolhida pra expor depois em Montreal. Quando isso aconteceu pedi a um amigo em comum – Guilherme Maranhão – que lhe contasse a novidade e que lhe agradecesse por ter me mostrado o que eu não tinha visto na época. Por me ensinar a ver o meu próprio trabalho. Ela, generosa como sempre, só mandou de volta o pedido que eu tirasse fotos da exposição e mandasse pra ela.

Foi essa generosidade que me fez colar nela, até ganhar um exemplar do caderno de
descontroles, no dia da abertura da exposição do Prêmio Porto Seguro. Todos feitos à mão e com tiragem limitada. Eu não ia perder a chance de ter um. E esse é um dos meus tesouros até hoje.

Em 2017, Guilherme Maranhão me convidou pra fazer parte da exposição Raros, Vintages & Inéditos na Galeria Virgílio. A princípio eu relutei. Não sabia o que expôr, se estava pronta…Aquelas baboseiras inseguras todas que todo mundo diz em algum momento na vida. Mas me conhecendo bem, ele sabia que bastava mencionar os nomes Fátima Roque e Kenji Ota, pra me convencer. Até respondi pra ele: chutar na canela não vale! Ainda bem que ele chutou. Posso encher a boca hoje quando digo que fiz minha estréia ao lado deles.

No começo desse ano tive o privilégio de dar uma oficina de Quimigramas no Instituto Moreira Salles. Enquanto montava a apresentação de introdução da técnica, me peguei pensando como a Fátima faria. Quis muito conversar com ela sobre isso. Quis muito ir visitá-la e contar sobre o mestrado. Sobre as coisas incríveis que vi lá fora. Sobre todos os novos limites que encontrei e que achei uma maneira de ultrapassar. Mas ver ela indo embora, não dei conta.

Dei conta sim, de continuar o legado que ela me passou. O que mais respondo aos meus alunos quando me perguntam se pode fazer isso, se pode aquilo… Eu só digo: por que não? Ou então: não deu certo? Isso aqui que eu tô vendo… não é uma imagem? É o quê então?

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Raquel Moliterno é mestre em preservação e gerenciamento de acervos fotográficos pela Universidade de Ryerson no Canadá. Realiza um trabalho autoral com processos fotográficos históricos do século XIX, o qual exibiu em São Paulo, Toronto e Montreal. Além de prestar consultoria na área de preservação para acervos públicos e privados.

 

Veja galeria com fotos de Fátima Roque aqui

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