O título desse texto é o trecho final da dedicatória do meu exemplar de “A medida das coisas”. Um dos livros que recorro várias vezes e guardo como um dos objetos mais importantes que tenho. Algo para mim inestimável, sobretudo por sua dedicatória. Duas duas linhas escritas a lápis e que resumem todo um afeto.E toda uma fragilidade: o traço fino, a letra delicada, que pode ser apagada.
Um livro é analógico. Pode ser mensurado fisicamente: comprimento, largura, volume, textura, cheiro, e sugere, segundo as tentativas de definição de Tacita Dean, um sinal continuo e um percurso, ao passo que o digital, esse facilitador dos imediatismos, constitui o que está fragmentado, decomposto em milhões de números.
“Estamos sendo forcados a marchar rumo a uma revolução efervescente se, volta, sem um suspiro ou um aceno para tudo que estamos perdendo”, ela escreve. “E esse é o ponto, o que estamos perdendo é uma imensidão de riquezas, e por enquanto estamos decidindo por não substitui-las adequadamente”.
“É uma idade de merda”, diz Tacita Dean, em uma entrevista. “Tudo saiu de controle. As pessoas ruins estão ganhando, e estão fazendo isso através de todo tipo de meios mentirosos. É preciso encontrar alguma honra no que se faz. Ainda que isso pareça antiquado ou não”.
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“Perdemos, dizem, a arte de morrer, e estamos perdendo, sem que seja preciso que alguém o diga, a arte do savoir vivre”, escreve Flusser, no artigo “Da arte de sobreviver”.
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Não foi à toa Tacita Dean perseguiu o raio verde [The Green Ray,2001], fotografou um eclipse na Cornualha [em Diamond Ring, 2002, veja só que nome bonito para uma obra: Anel de Diamante] ou investigou a história de velejadores perdidos [Disappearence at the sea, 1996].
Ou filmou, no dia 28 de abril de 2007, uma das últimas performances – talvez a última, não consegui descobrir – do bailarino e coreógrafo norte-americano Merce Cunningham para a composição 4’33”, de John Cage.
Um dos nomes mais importantes da história da dança, Cunningham, que foi solista na companhia de Martha Graham, foi um colaborador próximo de John Cage.
“Merce estava em uma cadeira de rodas, prestes a completar 88 anos, e sua disposição para aparecer diante de uma câmera era em menor. Mas ainda era um bailarino, e quando um bailarino recebe um chamado a que tem condições de atender, quase sempre volta ao palco – foi o que Merce fez”, lembra Tacita Dean, em A medida das coisas.
Sem ensaio, o bailarino acomodou-se em uma cadeira, de frente para um espelho. Para cada um dos três movimentos da composição de John Cage, um gesto, uma pose.
“Então ele deu um nome para nova coreografia: STILLNESS [ausência de som e movimento]”.
Cabe aqui o parênteses: 4’33’’ (1952) é considerada um marco nas investigações de Cage sobre o silêncio, apresentando em suas diferentes versões de partitura, indicações para o performer permanecer em silêncio durante os três movimentos que constituem a peça.
E enquanto escrevia sobre Tacita Dean, encontrei algumas das cartas de amor que John Cage escreveu para Merce Cunningham. E uma foto maravilhosa do Peter Sayers.
E lembrei de você, claro, que me apresentou a Tacita e me deu esse livro maravilhoso. Com uma dedicatória linda.
“I’m unsentimental but I’m sitting at one of our tables and looking in a mirror where you often were.
[…]
Your spirit is with me.”
“Rain finally came + it’s beautifully cool. Wonder how long it will last. It was marvelous because it started suddenly and then was alternately terrific and gentle.
I think of you all the time and therefor have little to say that would not embarrass you, for instance my first feeling about the rain was that it was like you.
[…]
Love you.”
Pessoas como Tacita Dean, John Cage, Merce Cunningham e você, estão no mundo para semear a beleza.
Esta deveria ser
a verdadeira medida de todas as coisas.
Rio de Janeiro, 22 de fevereiro de 2019
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Cassiano Viana é editor do site About Light