usava embornal catava sucata serrava
madeira úmida de onde pendiam larvas e insetos e
resinas endurecidas que às vezes guardava para
me mostrar salientando as matizes e o hipnótico rizoma
que se encravava no centro daquela porcariada meu pai
gostava de construir barracos
que eram quartos
e também pequenos ferros velhos muito embora
a ideia de clausura anule naturalmente a de
ferro velho mas meu pai
fazia isso ele edificava
cômodos para aprisionar miudezas e enfileirava pregos na parede que era ora
de madeira ora de barro ora de papelão
e me ocorre agora que pregos não podem aderir
ao papel mesmo que seja papelão mas meu pai
fazia isso de alguma forma e nos pregos pendurava sacolas plásticas
de mercado dentro delas mais pregos parafusos estopas sementes
ferrolhos cápsulas guizos cadáveres
de objetos todas as manhãs
meu pai com os jornais embrulhava a marmita com a bolsa
de feira aninhava o revólver com a bengala
substituía a perna defeituosa com a carne esponjosa ao topo do nariz escondia
o tumor que não apenas crescia em si mesmo como fez crescerem em meu pai
os dedos as juntas o coração as artérias
do cérebro pegava o ônibus subia a serra se embrenhava
no mato frequentemente meu pai
sumia falava a palavra “córrego” lambuzava-se de melado atirava para o alto queria
afugentar o mal e então criava bezerros me sentava
à sombra dos carrapichos usava botas
para tratar os porcos ia à feira
para negociar cavalos e um dia me trouxe um macaco
preso numa gaiola foi fantástico foi terrível porque o bicho
masturbava-se nunca soube
que fim teve tião meu pai
tinha gaiolas pois além de pregos e tralha velha
prendia passarinhos às vezes cobras
que exibia aos amigos no fundo da garagem ele também
capturava lagartos que cozinhávamos e era como carne de frango me
diziam como diziam
que negros não eram confiáveis que leite de égua
era bom para os pulmões o sangue
do meu pai corre em mim como corre o medo
de que me pegue em flagrante minha vida
tão promíscua aos olhos dele tão íntima
da crosta a crescer ao redor dos pregos meu pai
guardava a farda atrás da porta da cozinha também num prego também
presa resguardada em sua inútil
persistência o cassetete o quepe a infantaria a
cova rasa que talvez tenha crescido no mato o tiro
certeiro no cão doente os tubos que se ligavam ao corpo
do meu pai sempre que ia ao hospital pareciam os mesmos meu pai
gostava mesmo é de desaparecer por entre os eucaliptos e ouvir
o assovio dos bichos por trás da ordem a preservar da moral
a perseguir meu pai enterrou
a faca bem na testa do cabrito eu vi o mesmo lugar
onde nele crescia o tumor eu ouvi o urro eu vi o sangue
brotar instantâneo eu ajudei a segurar
as patas enquanto a faca rasgava o ventre e a força do meu pai
trazia à tona as vísceras achei
que deveria ter orgulho comemos a carne o sangue
do meu pai talvez tenha derramado
sangue alheio a memória fugidia o rastro de violência
insinuando-se no cicio dos matagais no que sei
e no que não sei
sobre meu pai
/
Juliana Krapp é jornalista e escritora