Fazendo um Rolo com Gui Galembeck

Por Marcio Menasce

A fotografia não pode ser um rolo. Ela pode ser vários. Um retrato é um rolo entre fotógrafo e fotografado. Um documentário é um rolo entre o autor, a história e os personagens. Um célebre 35mm não passa de um rolo de filme. E se não tiver rolo entre artista e espectador, não tem fotografia.

Nesse vai e vem de imagens e percepções, o fotógrafo paulista Gui Galembeck propõe um rolo com o público para poder lançar seu livro “Rolo”. Ele abriu um financiamento coletivo pelo site http://www.catarse.me/rolo para captar R$ 18 mil e financiar a produção da obra.

O trabalho, realizado numa feira de rua de Campinas, propõe uma reflexão sobre a acumulação material e recebeu este nome porque assim é chamada a feira. O About Light fez um rolo-entrevista com o fotógrafo pra te contar mais sobre esse rolo todo.

Como surgiu a ideia do tema de “Rolo”?

Certo dia, após a morte de meu pai, minha mãe me ligou dizendo que a casa dela seria vendida e pediu que eu viajasse até minha cidade natal, Araras, para lidar com as coisas de meu pai que estavam estocadas lá. Tudo seria colocado em uma caçamba e sumiria para sempre como lixo. Eu sabia que a maior parte do arquivo fotográfico autoral dele estava lá e me coloquei prontamente à disposição para ajudá-la. O fato é que a casa estava simplesmente desmoronando e o que encontrei não foi apenas o arquivo fotográfico, mas uma enxurrada de objetos pessoais e particulares que me remetiam a lembranças e sentimentos profundos. Eu tive que lidar com essas emoções a partir de cada item encontrado. Naquele momento eu fui obrigado a me questionar o sentido da acumulação material e o que realmente teria algum valor em meio àquela montanha de entulhos, mesmo que fosse apenas algo sentimental. Então, eu percebi que existe uma linha tênue, extremamente pessoal, entre o que é lixo e o que traz consigo algum significado. Resolvi tentar entender e tratar o assunto de maneira mais profunda, então comecei esse projeto, ainda sem saber muito bem qual caminho ele tomaria.
Muitas vezes nós adquirimos inconscientemente características de nossos pais. Você também acumula objetos, negativos e etc? Caso o faça, o que acumula?

No meu caso, adquiri muitas características de meu pai, a começar pelo interesse por fotografia. Mas, sim, me considero uma pessoa mais ou menos acumuladora. Aprendi a dar prazo para as coisas e a me desfazer do que não uso. Porém, sinto uma dificuldade muito grande quando se trata de câmeras, arquivos de negativos e equipamentos fotográficos em geral. Acabei me transformando no guardião do acervo fotográfico de meu pai, que consiste em caixas e caixas de negativos, e aos poucos venho aprendendo a lidar com isso. Encontrei aproximadamente 40 câmeras no meio das coisas dele e embora, a maioria estivesse impossibilitada para uso devido aos maus tratos do tempo e da umidade, consegui me desfazer de pouca coisa até agora. Não é uma tarefa fácil.

Depois de fazer esse projeto, que sentimento você acha que move uma pessoa a acumular coisas? De alguma forma, você vê relação entre a acumulação e a fotografia?

Acredito que, cada vez mais, vivemos em uma sociedade que impõe a dinâmica do ter para ser, ou seja, o que você tem define quem você é. O consumismo dá pouco valor a formação pessoal. Transpondo essa mentalidade para o mundo da fotografia, não é difícil se tocar de que diariamente somos bombardeados com novas câmeras, novas lentes, mudanças de sistema, computadores mais rápidos e com melhores processamentos. Mas não precisamos de nada disso para fotografar, podemos fazer tudo de maneira bem mais simples. No entanto, estamos inseridos na dinâmica do consumismo e assim segue a vida.

Por outro lado, quando pensamos sobre acervos fotográficos, eles são memórias de extremo valor, que temos o dever de acumular, manter, organizar e trazer à luz. Fotógrafos costumam produzir infinitas vezes mais do que de fato disponibilizam ao público. Acumulamos uma quantidade tão grande de imagens que é imprescindível buscar entendimento sobre o que tem real valor ali e aprender a nos desfazer do ruído. Nos tornaremos melhores fotógrafos quando soubermos lidar com nossa acumulação.

Acredita que a fotografia vernacular, ou mesmo a autoral, sejam formas de acumular memórias, estados de espírito ou ideias?

Desde sempre a fotografia detém a função de acumular sentimentos, desejos, sensações e memórias. A diferença é que hoje, com o intenso uso das redes sociais, a fotografia se tornou um instrumento de autodefinição. Antigamente guardávamos a memória de toda uma família em uma caixa de sapatos que seria passada de geração em geração. Hoje parece que as pessoas estão mais interessadas em se auto afirmar do que em registrar sentimentos ou momentos de uma maneira verdadeira e sincera. Isso é desesperador, fico imaginando como serão as memórias das pessoas daqui a 50 anos, se é que elas ainda existirão. Me divirto muito mais com uma caixa de sapatos empoeirada no colo do que com algumas contas de Instagram que passam pela tela do meu celular. As câmeras, cada vez mais, estão voltadas para o próprio dono, sinto que a necessidade de registrar o outro não faz parte do interesse de pessoas comuns, embora, sim, tenhamos uma produção autoral cada vez mais consistente, e fotógrafos importantíssimos que usam esse meio como destino final de seu material.
Falando mais sobre o “Rolo “, a feira onde o trabalho é ambientado acontece todos os dias? Em que região especificamente de Campinas?

No Jardim Campo Belo II, que se situa na cabeceira do aeroporto de Viracopos, o segundo aeroporto internacional mais importante do país, quase na divisa entre Campinas e Indaiatuba. É uma região de muito contraste e riqueza social. A feira oficial acontece aos sábados, domingos e feriados.
Como é a atmosfera da feira que você apresenta, ela fica em um lugar perigoso da cidade? Você sentiu hostilidade no ambiente? Se sim, como fez para lidar com isso e seguir com o projeto?

Aquela não é uma área muito bem-vista pela população que mora em outras regiões da cidade de Campinas e eu entendo os motivos pelos quais a região leva essa má fama. Ela dominada pelo crime e as pessoas que vivem ali levam a vida sob pressão e convivem com situações perigosas em seu dia a dia. Por isso, é normal que haja uma hostilidade inicial a alguém de fora, como eu. Ter que lidar com isso estava previsto quando decidi começar esse projeto, foi uma aproximação lenta, conversei muito, ouvi muito as pessoas, algumas vezes voltei de lá sem ter feito uma foto sequer. Mas quando conseguia uma foto, retribuía levando uma cópia na próxima visita. Issso foi amaciando o ambiente e engrandecendo o relacionamento com as pessoas. Hoje se tornou quase normal pra mim, rodar pelo bairro com uma câmera, as pessoas me chamam e pedem fotos, algumas até falam que não querem foto de celular, querem com “aquela câmera esquisita”. Enfim, hoje me sinto bem à vontade ali e percebo a atmosfera da feira e do bairro como um ambiente tranquilo e de certa forma familiar. Mas, com certeza, demora um tempo para se habituar no lugar e, talvez, uma pessoa que chegue ali de repente não tenha essa mesma sensação.

Você optou por trabalhar com uma câmera de médio formato e analógica. Pode explicar um pouco as razões desta escolha?

Eu sempre gostei de trabalhar com médio formato porque me encanto com as cores e a profundidade das imagens. No início dos anos 2000, quando migrei para o digital em meus trabalhos comerciais, eu resolvi manter a fotografia analógica apenas para projetos autorais porque sentia falta de personalidade nos arquivos digitais. Especificamente sobre o “Rolo”, percebi que trabalhar com o médio formato traria uma formalidade maior e uma lentidão necessária ao fazer contato com as pessoas na feira. Esse processo lento fez com que eu fosse notado, e com que a fotografia se tornasse consentida. Me obrigou a pedir permissão e a trabalhar de maneira menos predatória. Além disso, trouxe uma riqueza de detalhes e cores que eu não conseguiria de outra maneira, o que mais uma vez me encantou e acabou moldando a cara do trabalho.
Me parece que se vende de tudo na feira. Seria possível citar algumas coisas?

A Feira do Rolo se divide em duas partes, ao lado da rodovia. De um lado temos uma feira normal, voltada a população local do bairro. Do outro lado temos o Rolo propriamente dito, onde se encontra literalmente de tudo. Muitas ferramentas, utensílios domésticos, roupas, bicicletas, pedaços de coisas, fios, peças, móveis, animais, coisas antigas, equipamentos de som, celulares, carros, motos, cigarros e bebidas. Coisas legais e ilegais. Refeições. Itens usados, em bom ou péssimo estado. É o paraíso do acumulador. O mais interessante é que parte dela fica em meio a um ferro velho o que traz uma dramaticidade ainda maior ao local. Gosto de ver a Feira do Rolo como uma forma de resistência social e, por que não, subversão do sistema econômico. Definitivamente não precisamos sair comprando coisas novas a todo momento, embora seja isso que o sistema impõe. Temos a obrigação de reciclar nossos pertences. Uma coisa que não tem mais utilidade para você pode ser muito útil ao seu vizinho.

Qual é o perfil dos vendedores? Eles vendem objetos pessoais usados, ou são como “garimpeiros” que coletam de tudo para levar à feira e vender?

Percebo que as pessoas do bairro trazem objetos pessoais ou artefatos de utilidade doméstica. Coisas que estão sem uso, ou quebradas, e por algum motivo elas entendem que aquilo pode ser útil para alguém, conseguindo assim também ter algum retorno financeiro com isso. Também trazem roupas, sapatos e animais que criam no quintal de casa. Há também os garimpeiros. Estes vêm da região toda para expor suas peças antigas, materiais de ferro, madeira e achados de valor. É uma feira muito respeitada na região e as pessoas viajam centenas de quilômetros para montar suas lonas e ter um espaço ao sol na beira da rodovia.

O ensaio rolo está encerrado ou você continua indo à feira e produzindo? De que período temporal são as imagens que estarão no livro?

Embora a narrativa do livro se concentre em um período muito curto de tempo, eu comecei a fotografar esse projeto em junho de 2017. Estamos no fim de 2018 e continuo produzindo, de maneira mais cadenciada que no início. Tenho uma certa dificuldade em parar de produzir enquanto o projeto não for lançado. É bem provável que eu continue produzindo por um tempo ainda depois de finalizado. É difícil se desfazer de uma rotina depois que ela se torna parte da sua vida, então continuarei presente na feira, nem que seja para comprar ovos frescos, costelinha de porco e frango caipira.

O ensaio Rolo já conquistou algum prêmio? Como tem sido a repercussão do trabalho?

O projeto foi finalista de alguns prêmios, como o Prêmio Foto em Pauta e o Felifa Futura. Este segundo, levou a boneca do livro a ser exposta ao lado dos outros finalistas durante a Felifa 2018, na em Buenos Aires, na Argentina. Parte do ensaio participou da exposição coletiva “Em Construção”, no Valongo Festival Internacional da Imagem em 2017. Recentemente, estive no festival Co.Fluir, em Belo Horizonte, divulgando a campanha de financiamento coletivo, a boneca do livro foi exposta durante a noite de lançamentos de livros. A repercussão tem sido muito boa e, em se tratando de um material que ainda nem foi oficialmente lançado, me deixa bastante animado e confiante com o futuro da publicação.

Rolo é seu primeiro livro autoral?

Sim, se tudo correr bem, será!
Por que a escolha do suporte livro para o trabalho, o que a materialização das imagens proporciona ao artista em tempos de imagens virtuais?

Eu sempre me interessei por contar histórias visuais e o fotolivro é o formato perfeito para essa finalidade. Esse ensaio foi pensado para que as imagens funcionassem em conjunto, criando associações e amarrando uma narrativa concisa. É um projeto com pouquíssimas “fotos únicas”. Juntas, elas ganham muita força e um sentido mais robusto. Então, por tudo isso, é natural que ele venha ao mundo como fotolivro e não apenas como um ensaio virtual ou uma exposição. Além disso, sou fanático por edição, me divirto ao montar, fazer testes, decidir o papel, cuidar da impressão, sentir o cheiro do material. Nesse processo acabei aprendendo a costurar e a encadernar. Todas as bonecas do livro foram feitas manualmente por mim. É quase uma terapia.

Nos últimos anos, estamos vendo ressurgir a ideia do fotolivro como obra artística, não mais como uma coletânea de fotos da carreira de um fotógrafo. Essa ideia de obra, se viabiliza em duas vias: produção (pensamento e criação artística) e circulação (vendas). Como você vê as possibilidades de circulação de fotolivros no cenário contemporâneo? Há uma demanda crescente? Que meios o artista/fotógrafo tem hoje para fazer seu trabalho circular fisicamente?

Acho imprescindível a circulação física, mas por tradição na fotografia, a principal saída para trabalhos fotográficos são as exposições e, em circunstâncias muito específicas, as galerias. Isso concentra o poder na mão de poucos, que têm os contatos certos e são, digamos, aceitos por esse mercado, deixando uma parcela enorme de fotógrafos e artistas sem saída ou com poucas possibilidades, quando resolvem mostrar seu trabalho. Livros de fotografia, no modelo tradicional, representam um mundo quase inacessível à maior parte dos fotógrafos. Por outro lado, a autopublicação sempre existiu, assim como os fotolivros e livros de artista. O fato de estamos começando a prestar mais atenção neles, faz com que ganhem força. É uma saída muito digna e inteligente para esse entrave. A demanda esta crescendo mas nosso cenário ainda é um embrião e estamos aprendendo a lidar com as necessidades do mercado. Acredito demais no cenário de autopublicações, pois permite que o artista trabalhe sob demanda. Isso traz o poder para a mão do fotógrafo, o que eu enxergo como a chave para o sucesso.

De que forma se pode estimular este ambiente de produção autoral de fotolivros para que a criação fotográfica seja compreendida com uma obra comparada a um romance literário, um livro reportagem ou mesmo a um disco de música? Quer dizer, não há nada estranho numa banda laçar um disco por ano ou a cada dois anos, ou num romancista lançar um livro a cada dois anos. Já entendemos a produção de um fotógrafo ou artista visual da mesma maneira que um romance literário, ou ainda não? Se ainda não entendemos da mesma forma, o que falta para isso, a formação de um público, incentivo financeiro à produção por parte de editoras…?

Eu estou bem longe de ser um especialista de mercado. Embora fotografe há quase 25 anos, o mercado de publicações é uma novidade para mim. Posso estar completamente errado, mas creio que falta um amadurecimento do todo. Partindo do ponto de vista do artista, imprimir com qualidade ainda é algo muito caro, então uma grande parte do trabalho se concentra em achar maneiras de viabilizar nossos projetos e contornar essa situação. Se um romance custa R$ 30 em uma livraria, um livro de fotografias pode custar R$ 200 ou mais. Hoje, estamos vendo a demanda por fotolivros crescer, ao mesmo tempo que vemos livrarias e editoras fechando. O mercado da música passou por algo parecido um tempo atrás. Achávamos que as gravadoras e as lojas de discos acabariam, mas elas conseguiram se reinventar e atender a um novo cenário. Também vimos o ressurgimento do disco de vinil como material colecionável e hoje muitos lançamentos voltaram a ser feitos em Vinil.

Se tem uma coisa que devemos prestar atenção e aprender com tudo isso é que, hoje, os músicos têm muito mais controle sobre sua obra, sobre seus direitos autorais, sobre a venda de seu material, e muitas bandas tomaram as rédeas de sua produção. Se conseguirmos traçar um paralelo, podemos ter boas chances de uma reviravolta no mercado editorial a médio prazo. Talvez já estejamos vendo essa mudança se iniciando através da fotografia, mas isso sou eu, divagando.

 

Veja galeria com as fotos de Gui Galembeck aqui

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