Rita Isadora Pessoa escreve para Grete Stern

rio de janeiro, 9 de maio de 2018.

quando o Cassi me pediu que escrevesse algo sobre/para/com Grete Stern, eu acolhi a proposta não sem entusiasmo, ainda que com uma certa apreensão pelas fortes associações que seu nome traz à memória.

eis que o primeiro contato com a artista foi através de um ex. um presente. não um livro qualquer. um livro comprado numa viagem. não um ex qualquer, mas um ex que não habita mais o mundo dos vivos tal como nós o conhecemos, enquanto eu escrevo. o livro, o presente, acertou o meu alvo em cheio. nem sempre os presentes que ele me dava tinham tanto cuidado para com o meu gosto particular, mas o livro da senhorita stern não tinha muito como me errar. uma mulher. uma mulher da escola bauhaus. uma mulher exilada. uma mulher com uma câmera fotográfica. uma mulher com a disposição psíquica para colagens. e animais andando de conversíveis com echarpes esvoaçantes à moda de isadora duncan, prontas para torcer um pescocinho de cisne desprevenido sob a influência de algol, a estrela mais maligna dos céus.

uma mulher ilustrando sonhos p&b para uma revista de psicanálise.

e nesse exato momento enquanto escrevo, percebo que não posso mais tocar no livro. sequer mesmo para abri-lo. talvez seja assim com os presentes dados em vida por aqueles que não vivem mais. os mortos nos deixam seus corpos como pesos de papel e precisamos de uma empilhadeira para abrir certos livros. uma escavadeira.

para retirar os corpos do caminho.

enquanto eu escrevo e percebo que não posso escrever sobre grete stern sem tocar em um morto, escrevo sim, a partir do desvio que a sua morte implica, como alguém que escreve timidamente um romance inteiro nas margens de um caderno: uma vila alemã destruída pelo ataque de uma matilha às margens do reno.

para escrever sobre a senhorita stern é preciso voltar a buenos aires, a 9 de maio de 1937. retornar a este excerto ~fictício~ de um exílio, à página rasurada de seu diário de fuga, a esta página comentada por um alterego poético: um procedimento experimental que experimento       na medida em que experimento a possibilidade de ser grete stern                                    como fui há tempos atrás greta gerwig     ou       frances             ou           lucia joyce        por um breve momento                                                              no auge de um retorno de saturno         ;       um procedimento que experimento

enquanto escrevo sobre a impossibilidade de escrever

sobre a senhorita stern:

“hoje faço 33 anos e não tenho certeza se ainda me lembro
da paleta opressiva da primavera em berlim
com seus ocres encardidos e um enegrecimento
que tinge aos poucos o céu de tinto
aqui no sul as cores são menos furtivas     e    frias
mas sinto que pratico uma língua    como   uma sonâmbula
caminha   sobre   uma mureta          distraída
sinto falta                        de uma certa incidência    um ângulo
que não encontro                um rebatimento de luz
impossível

hoje alcanço uma idade misteriosa – eles disseram
um palíndromo numérico
e aguardo
p a c i e n t e m e n t e
por um sonho
que solucione um teorema
emudecido

ou       por uma mulher
que acaricie o seu próprio braço
como se fosse um réptil querido

do ponto onde me encontro
não há retorno possível
e percebo que ainda me escapa        um ângulo
um ponto de fuga
entre a composição      o sono     entre a abertura
e o                   diafragma

tenho sido assombrada
por imagens
:    animais e cores insistentes
que recuso

na medida em que
os esquadrinho

mas isso é um problema, eles disseram

el psicoanálisis te ayudará
‘a psicanálise te ajudará’ – eles diriam em alguns anos
eles disseram muitas coisas

mas em alguns anos eu não estarei mais aqui”.

 

gretestern_03-1200

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Rita Isadora Pessoa escreve para Grete Stern ou Buenos Aires, 9 de maio de 1937

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Rita Isadora Pessoa (1984-) nasceu no Rio de Janeiro e é graduada em Psicologia. Estudou a poeta Sylvia Plath no mestrado em Teoria Psicanalítica (UFRJ) e concluiu em 2018 seu doutorado em Literatura Comparada (UFF), no qual pesquisou o duplo em sua modalidade velada e animal. Trabalha como tradutora, revisora, astróloga e taróloga. Tem poemas publicados em diversas revistas literárias e nas antologias A nossos pés, (7letras), Alto-mar (7letras), A extração dos dias: poesia brasileira agora (Escamandro). Foi uma das vencedoras do Prêmio Off Flip 2018, na categoria de poesia. Seu primeiro livro de poesia, a vida nos vulcões, foi lançado em 2016, pela Editora Oito e Meio. Seu segundo livro, mulher sob a influência de um algoritmo, venceu a terceira edição do Prêmio Cepe Nacional de Literatura e será publicado em 2018 pela Editora Cepe.

 

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Veja galeria de fotos de Grete Stern aqui

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