Eder Chiodetto escreve sobre Memória do Filme, de Eustáquio Neves

Entre cataclismos, estilhaços e desassossegos

O torvelinho de tempos sobrepostos que justapõe a memória errática conflagrada na trama fotográfica, a matéria histórica vista em perspectiva e os abismos dos afetos, são motores que impulsionam a fotografia experimental e visceral do artista Eustáquio Neves.

Com a propriedade de um alquimista que se enclausura no laboratório para transmutar o efeito dos agentes químicos e a intuição do artista que provoca e se farta dos acasos que os caminhos heterodoxos de sua pesquisa propiciam, Eustáquio caminha no sentido de provocar explosões no interior da linguagem.

Nos quase 30 anos que distam as primeiras produções do artista até a série Memória do Filme (2018), presente nesta mostra, percebemos como as estratégias do artista seguem no firme propósito de dotar as imagens de uma intrincada espessura, no lugar de pensá-las como superfície.

Colagem de imagens, inserção de textos, apagamento das fronteiras entre elementos distintos, granulação, tintas, “cicatrizes” resultantes de sucessivas agressões aos originais e vestígios de documentos, por exemplo, promovem uma espécie de cataclismos internos a partir dos quais essas complexas imagens abdicam do relevo em nome de uma profundidade do campo espectral pela qual nossa percepção visual é levada a um percurso quase hipnótico.

Se, como é sabido, toda fotografia é um território que tensiona o tempo ao fazer o passado ressurgir num presente imediato, a obra de Eustáquio parece nos alertar para a falha da promessa do jogo fotográfico em fazer emergir sem fissuras, e de forma insubmissa, esse tempo pretérito cristalizado nas superfícies das fotografias. Suas imagens, portanto, revogam a condição de testemunhas oculares de um determinado evento para se consagrarem como um relicário de tessituras acumuladas na experiência ancestral de um artista que se percebe como um agente histórico do seu tempo.

Na série Objetização do Corpo (1999), em que o artista irá abordar o difícil tema das mulheres escravas que eram abusadas sexualmente pelos seus proprietários, as figuras femininas centrais surgem consteladas por uma miríade de símbolos e vestígios semi-apagados que remontam o imemorial do tempo. O tempo histórico surge dilapidado na representação iconográfica a despeito da dor e dos murmúrios abafados que essas imagens ensejam. Abrandadas por uma luz de natureza tortuosa, a dissipação entre figura e fundo engolfa-se para alastrar-se nos contornos de formas vertiginosas. Metáfora da amnésia social que se arrasta na sociedade e que percebemos na herança maldita da intolerância que o tom da pele negra ainda desperta.

Os fundamentos histórico-sociais que o artista aborda em suas séries, ganham assim uma bem vinda abordagem filosófica e reflexiva. Entre o assombro diante de temas recorrentes como a escravidão, a intolerância, o abuso da mulher, o artista também sintetiza de forma pontual a crise da imagem no mundo contemporâneo. Os jogos do claro-escuro, o embate de texturas que por vezes cintilam o êxtase e em outros momentos anunciam o ocaso das paixões revelando fossos abertos às trevas, convertem-se em estilhaços de tempos revolvidos. Ao organizar os labirintos do plano espesso de suas composições, Eustáquio constrói novas relações simbólicas entre os elementos de sua história pessoal e familiar que alcançam a visão do êxtase no seu mágico laboratório de experimentações.

Memórias são estilhaços que a fotografia tenta em vão restaurar, enquanto o artista sorrateiramente escreve poemas visuais reunindo acasos, desassossegos e os desvãos da matéria orgânica e fotográfica que habita seu território especular.

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Eder Chiodetto é jornalista, fotógrafo, curador e crítico de fotografia.

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