No dia 25 de outubro de 1980, o Jornal do Brasil publicava o poema “A excitante fila do feijão”, de Carlos Drummond de Andrade.
Drummond se emocionara com as fotografias estampadas no jornal três dias antes, quando Rogerio Reis registrou a multidão que tentava comprar – entre gritos, desmaios, bordoadas e prisões –, um simples quilo de feijão, em um supermercado no bairro de Campo Grande, Zona Oeste do Rio de Janeiro.
Faltava feijão no prato, mas também faltava leite e carne, um dos primeiros produtos a sumir dos frigoríficos e supermercados. Os brasileiros amargavam tempos difíceis, com a falta de alimentos e a inflação alta. A população de menor aquisitivo, como a de Campo Grande, obviamente eram a mais atingidas pelas prateleiras vazias.
“Larga, poeta, o verso comedido,
a paz do teu jardim vocabular,
e vai sofrer na fila do feijão”.
Escreve Drummond.
Publicado o poema, na capa do saudoso Caderno B, Drummond escreveu para Rogério:
“Rogério: suas fotos deram mais vida aos meus versos”.
Reproduzimos abaixo o poema A excitante fila do feijão, de Carlos Drummond de Andrade.
A excitante fila do feijão
Larga, poeta, a mesa de escritório,
esquece a poesia burocrática
e vai cedinho à fila do feijão.
Cedinho, eu disse? Vai, mas é de véspera,
seja noite de estrela ou chuva grossa,
e sem certeza de trazer dois quilos.
Certeza não terás, mas esperança
(que substitui, em qualquer caso, tudo),
uma espera-esperança de dez horas.
Dez, doze ou mais: o tempo não importa
quando aperta o desejo brasileiro
de ter no prato a preta, amiga vagem.
Camburões, patrulhinhas te protegem
e gás lacrimogêneo facilita
o ato de comprar a tua cota.
Se levas cassetete na cabeça
ou no braço, nas costas, na virilha,
não o leves a mal: é por teu bem.
O feijão é de todos, em princípio,
tal como a liberdade, o amor, o ar.
Mas há que conquistá-lo a teus irmãos.
Bocas oitenta mil vão disputando
cada manhã o que somente chega
para de vinte mil matar a gula.
Insiste, não desistas: amanhã
outros vinte mil quilos em pacotes
serão distribuídos dessa forma.
A conta-gotas vai-se escoando o estoque
armazenado nos porões do Estado.
Assim não falta nunca feijão-preto
(embora falte sempre nas panelas).
Método esconde-pinga: não percebes
que ele torna excitante a tua busca?
Supermercados erguem barricadas
contra esse teu projeto de comer.
Há gritos, há desmaios, há prisões.
Suspense à la Hitchcock ante as cerradas
portas de bronze, guardas do escondido
papilionáceo grão que ambicionas.
É a grande aventura oferecida
ao morno cotidiano em que vegetas.
Instante de vibrar, curtir a vida
na dimensão dramática da luta
por um ideal pedestre mas autêntico:
Feijão! Feijão, ao menos um tiquinho!
Caldinho de feijão para as crianças…
Feijoada, essa não: é sonho puro,
mas um feijão modesto e camarada
que lembre os tempos tão desmoronados
em que ele florescia atrás da casa
sem o olho normativo da Cobal.
Se nada conseguires… tudo bem.
Esperar é que vale – o povo sabe
enquanto leva as suas bordoadas.
Larga, poeta, o verso comedido,
a paz do teu jardim vocabular,
e vai sofrer na fila do feijão.
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Veja as fotos que Rogério Reis fez de Drummond em seu apartamento na Rua Conselheiro Lafaiete, 60, Copacabana aqui.