É fácil esquecer que o livro é uma tecnologia, palavra hoje associada a telas e luzes piscantes, uns e zeros e a promessa de soluções – sempre no futuro – de todos os males do presente. Mas o livro, essa tecnologia milenar, que não depende de energia elétrica e não para de funcionar se não for atualizado, já surgiu tão bom que pouco mudou até o formato que conhecemos hoje. Nem a imprensa de Gutenberg, e lá se vão mais de 5 séculos, alterou seu conceito básico: algumas folhas encadernadas, impressas ou não. Pegue uma folha de papel, dobre-a no meio: eis um livro de 4 páginas.
A forma-livro apazigua a ansiedade de fazer senso do caos indiferente que reina fora do espaço arbitrário das páginas; traduz um mundo de experiências e informações desestruturadas em poucos símbolos convencionados – o alfabeto –, previsivelmente encadeados em linhas retas: o universo ordenado da esquerda para a direita, de cima para baixo (o universo ocidental, pelo menos).
“Por essa arte você pode contemplar a variação das 23 letras”, diz a epígrafe de Borges para sua Biblioteca de Babel, que nada excluía (dentro de parâmetros estritos). É também do argentino a recomendação de, ao invés de labutar em longos romances, imaginar que estes livros já existem e escrever seus resumos. O conto foi seu gênero favorito. Que se saiba não produziu imagens, mas não custa especular: fosse o escritor cego fotógrafo, provavelmente faria zines.
Editar esses pequenos livretos é uma forma ágil e barata de articular uma ideia. Algumas folhas impressas dobradas e grampeadas no meio, sem necessidade de grande sofisticação técnica ou investimento material. Sem grandes pretensões, o formato permite dar materialidade a pensamentos antes confinados ao abismo efêmero das sinapses e da memória. Coisificando as ideias, permite que elas existam fora de si, onde podem se revelar em toda sua imperfeição. E qual o risco, se ainda é pouco o que se tem e menos ainda o que se exige para mostra-lo? Teste, faça um, dois, teste, faça o próximo. “Erre melhor”, diria Beckett. Mais do que um destino final, o zine é um ponto-e-vírgula; um estúdio ambulante, reproduzível e reciclável, colecionável e descartável.
“Sangue frio” (2011) é um exercício de narrativa mínima, um pequeno gesto que registra a empreitada – sem dúvida mais ambiciosa que a obra – de matar não apenas um mosquito, mas dois. Dezesseis páginas impressas (parcamente) a jato de tinta são as maiores consequências dessa caçada, além de uma parede manchada e uma cortina derrubada.
Meu primeiro livro é uma ode à insignificância. Acho que nunca fiz melhor. Se o fino volume servir para mover o ar em um dia abafado ou, no auge, esmagar outro inseto contra sua capa branca, terá cumprido mais do que o seu papel.
Por outro lado, não se mata mosquito só com a força do pensamento.
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Rony Maltz (@ronymaltz), professor e artista visual, é fundador da {Lp} press / lppress.org.
Querido Rony, refletindo a sua personalidade, o texto é simples mas de uma beleza e profundidade ímpares!! Parabéns!! Continue o seu sucesso porque ele está apenas começando!! Beijo do Lucas
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